domingo, 21 de outubro de 2007

Discutindo com Estilo - Ou Não

Hey, pessoal! Maravilha?
Dia de atualizar hoje! Atualizando rápido pra compensar o tempo tão demorado das últimas postagens. Siiim, pasmem, eu tenho um pouco de humanidade.

Sem muito o que falar, vamos ao que interessa: dinheiro! Só que dinheiro eu não tenho, então vamos a outra coisa que interessa, e que eu possa ajudar. Bah, deixa de besteira, Rafael. Let's get it on!

Discutindo com Estilo - Ou Não

Havia uma época, no passado, em que discutir era uma arte nobre e requintada. A discussão, qualquer que fosse o assunto, era digna de nota, com ponderações inteligentes, defesas austeras e pontos de vista bastante claros e, naturalmente, diferenciados. Discutir era como uma luta de esgrima.
O século XX, entretanto, nasceu. Com ele, toda aquela felicidade reinventora da humanidade. Guerras Mundiais, coisas eletrônicas, exploração do espaço, o São Paulo FC e eu, claro. Nossas décadas mais recentes foram dedicadas minuciosamente a acabar com toda a firula clássica da belle époque de outrora, para o bem ou para o mal (caramba, apesar do parágrafo vazio, eu falei bonito).
Junto do século XX e dessa destruição sistemática dos paradigmas anteriores, veio a tentativa de pôr a arte da discussão no lixo. A banalização da discussão foi sentida nas mais diversas camadas sociais, na mídia... O que antes era a defesa da honra, a defesa da família e dos bons costumes e a defesa da religião e da pátria, agora era motivo para pancadaria do mais baixo nível no churrasco de domingo com os amigos. Caramba, que bagunça.

O que estou tentando dizer, guris, é que hoje discutir não é mais como há uns cem anos atrás, quando os lordes se reuniam e falavam sobre como fazia frio em Londres, ou como poderia fazer mais frio em Londres. Naquela época, o Lord Churchill diria que a precipitação pluviométrica (isto é, as chuvas) eram deveras intensas na capital inglesa. Lord Kellenger diria, entretanto, que as chuvas não eram tão intensas quanto antes, e que isso causaria ar mais seco, o que ajudaria a poluir o céu londrino. Eles falavam de dados, estatísticas, um atacava a teoria do outro, o outro contra-batia. Até que, depois de quase duas horas de cerveja e discussão, um deles faria um derradeiro comentário. O segundo balbuciaria. Não diria nada. Bebericaria a cerveja e diria, despretensiosamente: "Talvez...". E teríamos um vencedor. Justo e simples.
O que aconteceu entre a grande era vitoriana e o mundo moderno contemporâneo atual de hoje foi o aparecimento de engraçadinhos, que acham que todos merecem ser iguais e aqueles papos comunistas infelizes, e despeitaram os anos de conhecimento adquiridos pelos eméritos srs. Churchill e Kellenger. Primeiro, houve aquele sem-graça que não suportou ser vencido em uma discussão, e por andar armado, acabou por atirar no vencedor, coitado. O cara da arma foi punido no Inferno, para que conste, e o vencedor justo vive até hoje no Paraíso com 70 mulheres lindas e um conjunto para jogos de poker. Há Justiça no além-vida, e ela funciona!

Mas não estamos falando da violência metropolitana. Existem diversos tipos de atentados contra a ordem natural da humilhação humana. O mais conhecido deles (depois, naturalmente, do revólver), é uma revolucionária idéia, de criador desconhecido, de idade desconhecida e de, enfim, natureza desconhecida. Mas você não o desconhece, caro leitor. Quer ver?
Suponhamos que esteja você e um amigo seu, de longa data ou de convivência recente, os detalhes são irrelevantes. Conversa vai, conversa vem, vocês finalmente encontram algum motivo para discordar, e aí começam a medir forças. Dados estatísticos experientemente colocados entre entonações e gestos, de uma maneira beirando a profissional. Praticamente um duelo de mestres. Nos finalmente, seu oponente começa a balbuciar. Você pressiona, inventa alguns dados, e faz o comentário final: "Ah, isso quer dizer que, de uma maneira ou de outra, ir pra praia pela Anchieta é bem melhor do que pela Imigrantes". Parabéns, você venceu. Seu oponente pausa, pondera, olha pra você e, em vez de dizer "você tem razão", diz, desafiadoramente, "Ou não". E pronto, discussão avacalhada.
O "Ou Não" é uma maneira desesperada de não perder uma discussão. É como ofender a mãe. Como derrubar o tabuleiro de xadrez no chão. Mas o treco é que ele acaba sendo muito providencial, porque não importa quão contundente seja sua opinião, você sempre pode estar redondamente enganado. E o cara diz "Ou não", que pode não ser nada de mais. Mas é uma maneira meio torta de lembrar que ele está errado. Mas você, talvez, também esteja.

Não sei se estou sendo claro, talvez seja o calor. Mas o caso é que desde que "Ou não" foi pronunciado pela primeira vez, nenhuma discussão tem vencedor. Os assuntos se desenrolam e, perto de um final, um dos dois dizem algo como: "Por isso que eu falo - essa crise no mercado chinês pode ser catastrófrico pra saúde do Euro em 2009!". O segundo, surpreendido com essa conclusão, contra-ataca com "É. Ou não". E a discussão foi avacalhada. Deu velha.
Veja você que não adiantou de nada seu conhecimento profundo sobre o cenário econômico mundial contemporâneo e as relações comerciais China-União Européia. Seu amigo lembrou apenas que você pode estar redondamente enganado porque, oras, às vezes algo não tenha nada a ver com nada!
Você pode tentar continuar a discutir, pode dizer que você está certo, que isso é claro como a água, não há como contestar. Mas você corre o risco de ser infantil e petulante e, se estiver errado, ficar em pior situação ainda - porque as coisas sempre podem dar errado (certo, Murphy?). Você está em um dilema, não?

Nessas horas, o melhor a fazer é ser esportivo, e aceitar que seu oponente jogou sujo, mas ele pode ter tanta razão quanto você. Afinal, o mundo não costuma fazer sentido nenhum, mesmo, e é pretensão da humanidade achar que existe. Ou não, vai ver pra você o melhor seja partir pra ignorância, ofender a mãe, derrubar o tabuleiro de xadrez no chão e perder toda sua compostura britânica. O importante, pelo visto, é sair vitorioso de uma discussão.
Eu prefiro me certificar de que não vou dar a melhor cartada. Prefiro forçar uma derrota para o meu lado. E quando eu estiver às vésperas de uma derrota verbal, sou eu quem falarei "Ou não". E eu ganho de novo.

Ou não. Nunca se sabe o que podem inventar pra apimentar a vida. =D

Ouvindo:
El Matador
Los Fabulosos Cadillacs
Vasos Vacíos (1993)

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

Horário de Verão: Consideração Histórica

Boa tarde, macacada animada! Como vai indo o mês de Outubro? Bem, espero =D

O mês de Outubro estava indo muito bem pra mim, obrigado. Até diabos inventarem de adiantar os relógios em uma hora. Idéia de jerico. Agora eu, que já podia me gabar de dormir várias horas por dia, vou ter de acordar uma hora mais cedo. Tá, tudo bem, seu chato, você pode me lembrar que eu vou dormir uma hora mais cedo, também, mas quem disse que eu consigo pegar no sono uma hora mais cedo? Sem conversa. Eu só fico com sono no horário de sempre. Será um loooongo verão, esse...

O que me faz pensar que isso pode ser fruto para uma boa postagem. Ou não, vai saber. Leia e me diga o que você acha, oka?

Horário de Verão: Consideração Histórica

O Horário de Verão, como vocês devem sabiamente deduzir, não é invenção recente. Alguns filmes e seriados - principalmente os que relembram a história dos vizinhos do norte, os Estados Unidos - costumam contar como os americanos tiveram a sagaz idéia de criar o Horário de Verão para poupar energia elétrica. Agora, por exemplo, me vem à cabeça o agradável filme A Lenda do Tesouro Perdido, estrelado por Nicholas Cage, em que eles falam qualquer coisa sobre Benjamin Franklin ter instituído o horário de verão, o espertinho. O que eles pouco sabem, pobrezinhos, é que o horário de verão é bem mais antigo do que Ben Franklin e sua maravilhosa pipa que dá choque. Na verdade, essa história toda é mais antiga do que os próprios americanos. É que os americanos estavam ocupados demais notando a beleza do umbigo deles pra prestar atenção nesse tipo de coisa. Mas, sim, o Horário de Verão não é nada moderno, pretensão nossa. A ver, por exemplo, os antepassados nossos da Europa, os romanos.

Os romanos eram pessoas felizes. Guerreavam, matavam, usavam togas de mal-gosto e mandavam em metade da Europa. Eles se divertiam falando pomposamente e dando nomes esquisitos aos seus cidadãos, e inventando moda e mandando todo mundo seguir a moda deles. Vocês vão se lembrar, é claro, de quando eu falei aqui a respeito do mês de Agosto, que foi uma moda inventada pelo Imperador Augustus, e que na verdade não foi inventado, foi copiado da moda inventada pelo Ditador Julius Caesar e seu mês de Julho. É, mas não era só o calendário que eles gostavam de ficar criando, não. Esses guris também se divertiam inventando idiomas, religiões, roupas e horários (na maior parte das vezes, na verdade, eles copiavam das nações conquistadas, mas como ninguém mandou a nação ser conquistada, então os romanos estão com a razão). E o que nos apetece aqui era o horário. Vejam só: eles precisavam medir mais ou menos a passagem do tempo, mas o relógio digital só vai ser inventado no século XX - isso é uns dois mil anos depois deles. E também não adiantava se guiar pelo achômetro ("Ah, acho que já tá bom o suficiente", e o porco que estava no fogo virou carvão). Então, eles tentavam bolar planos maquiavélicos de se contar o tempo que passava - ainda que Maquiavel também só viesse bem mais tarde.
A idéia retirada debaixo da toga deles (écat) foi até que engenhosa e, segundo contam os fofoqueiros da Caras, copiada dos egípcios, que tinham um modelito ar-ra-sa-doooor para o próximo verão. Os romanos pegavam o intervalo entre o instante em que o sol nascia, o instante em que o sol se punha, e dividiam por doze! A razão do doze é que naquela época todo mundo tinha seis dedos em cada mão, então era mais fácil contar até doze. A peste negra iria decepar o sexto dedo de todo mundo, eventualmente. Menos da Daniella Cicarelli. =D
Seja como for, dividiram o dia matutino em doze partes. "E eu com isso?" você me pergunta. É para explicar que, sem querer, os romanos inventavam um prólogo do Horário de Verão. É que, no verão, os dias são mais longos, certo? Então o sol nasce mais cedo e se põe mais tarde. Como as horas eram baseadas no nascer e no pôr do sol, então elas duravam mais horas! No inverno, uma hora simples durava em torno de 44 minutos modernos, ao passo que, no solstício de verão, uma hora durava quase 75 minutos! Viu como eles aproveitavam bem o dia deles? Não é à toa que esses sagazes homens de toguinha mandavam e desmandavam na Europa.

Bom, eventualmente, os bárbaros invadiram Roma, tocaram o terror, chutaram os regentes romanos e redecoraram o Velho Continente com um toque mais rústico. Veio a Era das Trevas na Europa. Outras civilizações ainda mais exóticas do que os romanos inventaram outras maneiras tortas de se contar as horas. Mas foi quando chegamos, aí, ao século XVII e XVIII que a história das horas mudam.
Foi por volta dessa época que os novos manda-chuvas da Europa decidiram que se guiar pelo Sol não era, afinal, boa idéia. Eles começavam a construir as fábricas (all heil Capitalizm!!) e queriam obrigar os pobretas dos operários a trabalhar nas fábricas, independente de sol, chuva, granizo, dor nas costas e meningite aguda grave. Então pensaram nas horas em que estamos acostumados, em que a gente pega o dia inteiro e divide por 24. E aí, vejam vocês, a história do horário de verão à romana meio que desandou. Mesmo porque, a partir daqui, o nascer e o pôr do sol não vão significar mais meleca nenhuma. Você está de prova, querido amigo metropolita. Depois, veio os ingleses que inventaram os trilhos de trem, e de repente a Europa diminuiu. Paris e Roma eram quase cidades vizinhas, ligadas entre si por quilômetros de trilhos. Com esse frenesi, era de se esperar que os relógios passassem a ser importantes, pra que os horários de partida e chegada fossem levados a sério. Claro, aqui no Brasil a gente não tem a menor noção do que é "horário levado a sério". Mas os europeus não nasceram no Brasil, para azar deles, e vivem correndo atrás do relógio. Coitados.

O caso é que agora não tinha mais a malemolência de esticar o dia quando o verão chegasse, nem de encolher o infeliz quando a noite viesse. Os horários eram tediosamente iguais. Daí, quando chegava o verão (ah, o verão...), o sol nascia antes, mas ninguém notava isso pelo relógio. Ou seja, havia mais horas de sol claro! A manhã começava mais cedo!
Um inglês gente boa e amigo do povão notou isso, em um domingo de sol em algum ano entre o fim do século XIX e o século XX. Naquela época, relógios eram irritantemente comuns - tanto que Londres, a capital mundial da época, havia construído uma bonita torre com um relogiozão enorme no topo dela, pra lembrar os londrinos que era hora de voltar ao trabalho. Bom, esse inglês gente boa e amigo do povão, batizado William Willett, estava a assistir corrida de cavalos neste domingo de sol, em uma cidade de Kent, no norte da Inglaterra. Quando ele voltava da corrida, notou que muitos estavam dormindo, ainda, apesar do bonito sol de domingo. Ocorreu ao nobre anglo que isso devia ser porque as pessoas não acordavam quando o sol nascia mas, sim, quando dava 8 da manhã. E isso o incomodou: por que as pessoas estão perdendo um domingo tão bonito? E inventou o horário de verão, ou daylight saving time. Aliás, a Wikipédia acaba de me contar que William Wellet é tatataravô de Chris Martin, vocalista da banda também bretã Coldplay. Ê, família...

Bom, Wellet, que não era vocalista, teve lá a idéia. Dizia ele que isso faria as pessoas acordarem mais cedo, a aproveitar mais o sol, a serem mais saudáveis e, finalmente, isso iria ajudar a economizar energia. Ele tentou passar pra frente, mas não rolou. Ele fez uma propaganda violenta, mas também não rolou. Um membro do Parlamento britânico viu um panfleto, gostou da idéia, tentou uma moção, mas também não rolou. Então outro parlamentar, o futuro Primeiro Ministro Winston Churchill, também achou uma idéia supimpa, mas não rolou.
Até que veio a Primeira Guerra Mundial, e a Europa viu-se dependendo de carvão. Muuuito carvão. Pra torrar em canhões, em trens, em fábricas, whatever. E os alemães acharam essa idéia muito boa!, e instituíram na Alemanha - que estava brigando contra a Inglaterra, caso você tenha faltado nessa aula. Os ingleses viram, afinal, que era hora de ouvir o nosso amigo e, em 1916, passaram a moção do Horário de Verão! Aêw!
Mas William Wellett havia morrido no ano anterior, de modo que ele não ficou rico com isso. É, nem todo inglês com boas idéias vive tempo suficiente para enriquecer.
Aqui no Brasil-il-il, o Presidente, nanico nas horas vagas e aspirante a ditador militar Getúlio "Gordinho" Vargas achou legal a idéia, e a instaurou no verão de 1931. Ela era meio aleatória, porque não era sempre que Gordinho Vargas assinava, e não era sempre que os outros presidentes passavam a idéia, também. O negócio aqui só ficou sério em 1985, quando desde lá todos os anos a gente tem horário de verão. Isso, é claro, se você não está no Nordeste, bichim. Que se você estiver, bem, esse post só lhe serviu de cultura altamente inútil. Bem como o resto do blog, então deixa pra lá.

Resumo da ópera: em um dia de domingo de sol, um inglês achou que as pessoas dormiam demais, conversou com uns amigos, descobriu que adiantar os relógios iria salvar a economia da Inglaterra e, acima de tudo isso, obrigar os preguiçosos a acordar uma hora mais cedo. Ele convenceu um continente inteiro de que isso funcionaria porque eles gastariam menos carvão na guerra. E ele acabou sendo lembrado como um homem engenhoso em um país que parece que só nascem gênios.
Na minha opinião, entretanto, William Willett podia até ser um cara legal. Mas ficou claro que eles se incomodou porque os caras dormiam até tarde em um domingo, e decidiu jogar água no chopp dos ingleses que aproveitavam o domingo porque, afinal, nos outros seis dias eles acordavam quando o sol ainda estava no Japão. Ele foi ao Governo e conseguiu uma lei obrigando os preguiçosos a acordar mais cedo, só porque ele achava melhor para o mundo.
Como eu me vejo do lado dos preguiçosos, eu digo: vá catar coquinhos, Willett. Que custava deixar os outros dormir em paz? Sorte sua que você já está morto e que seu tatataraneto é gente boa. Senão eu me veria no direito de te amaldiçoar até você ir para o Inferno, se é que você não está lá.

Feliz Horário de Verão pra vocês, eu acho. Já já é verão. =D

Ouvindo:
Friday-Friday
Boy Kill Boy
Civilian (2006)

domingo, 7 de outubro de 2007

Tortura Profissional Autorizada

Aê, pessoal! Feliz domingo pra vocês, cambada! Já é hora de continuar a rotina deste blog, não acham? Então vamos metralhar palavras! Hora de postagem! Post it, or DIE! \o/

Antes, um pouco de explanações cabem aqui. A Larissa, um anjo de menina e minha grande amiga, também conhecida como Fu, chegou a perguntar se as idéias postadas aqui são minhas, mesmo. Bom, Lari querida (e pra qualquer um curioso), já é conhecido que nada se cria, tudo se copia. Então tem, deveras, algumas idéias que eu vejo em algum lugar, que ouço em uma conversa, que leio em alguma revista ou sort of. Mas eu não as posto cru, elas têm de passar por um mínimo de sandice minha, sabe? Afinal, eu estou as escrevendo. Mas, sim, meus posts nascem, normalmente, do nada no meu cérebro, e eu as aproveito. Tenho que escrever correndo, para que eu não ache que ela ficou chata e eu desista. Só que são todas idéias minhas. \o/

Falando em ir rápido, é melhor que eu o faça. Senão eu desisto de novo deste post. A ver.

Contos do Cotidiano
VIII - Tortura Profissional Autorizada

Tudo começa quando você volta da escola, em um dia genérico. Inocente, você se desmonta do aparato estudantil para aproveitar mais uma belíssima tarde de primavera, fazendo o que a imaginação lhe permita. Ah, la belle vie. Antes de você dar o terceiro passo dentro de sua casa, entretanto, o telefone de casa toca. Você atende maquinalmente, e a voz de sua mama está saindo pelo aparelho. Diz sua mãe, depois da usual saudação de mamãe a um filho querido: "Filho, é melhor você se apressar para trocar de roupa. Daqui a pouco eu vou passar aí pra te buscar". "Buscar-me, mãe? E vamos onde, exatamente?". Ela execra a sua notável falta de memória para assuntos importantes. E lhe recorda: "Ao dentista, filho. Temos consulta marcada às 16h00".
Olha, rapazes, não sei quanto a vocês. Não sei se vocês são masoquistas, se sua dentista é uma loira linda ou um moreno atraente, mas eu morro de terror de dentista. Demônios vestidos de branco, lobos em peles de fofinhos carneirinhos, com mascarazinhas e jalecozinhos e um sorrisinho simpatiquinho (que merda de frase de boiola, essa), dispostos a nos ajudar a nos livrar dos males bucais, com todo o amor e carinho. Mas eu nunca consegui ver este lado de amor e carinho deles. Quando meus pais abandonavam a sala, tudo o que via era uma sala repleta de instrumentos medievais de tortura, todos brancos-hospital, para catalisar o meu receio sobre dentistas - a intenção deles não é nada boa, de longe.

Antes de você entrar no consultório, entretanto, tem toda a concentração. A preparação psicológica. Ao chegar na ante-sala, aquele clima hostil te chega de sopetão. A atendente diz, com uma voz de buzina de Fusca, que o dentista já já atende. Você senta, tremendo feito gelatina, em um banco qualquer. Seus pais pegam aquelas revistas veeeeelhas (Revista Veja: Cai o Muro de Berlin) pra dar uma folheada nas manchetes antiquíííssimas. Você, é claro, não gosta de ler a Veja. Tampouco as opções, como Caras, Revista TiTiTi, e essas depravações do nobre mundo do jornalismo sério e competente. Sentado como um homem às vésperas da cadeira elétrica, privado de suas liberdades, concedidas por Deus, pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e pela Constituição, você aguarda. Essa parte é uma das piores partes da vida, na minha opinião. Do outro lado, aquele zumbido fininho corta o silêncio e gela a alma. Bzzzzzzzzzzzz...
Você só imagina o que aquele ser vindo das profundezas mais esquecidas do Inferno está fazendo com o pobre humano do outro lado da porta, mas seu cérebro não consegue trabalhar com clareza. Ele está em torpor, com o barulhinho preenchendo cada vazio entre os seus neurônios. Todos os seus nervos - em especial os nervos dos dentes - se contorcem de pânico com o barulhinho mais temido pela humanidade. Sua mãe, aquela espiã traidora, não manifesta qualquer semblante de complacência, de pena, de apoio. Claro que não, ela está te entregando, em uma bandeja de prata, ao inimigo! Vendendo-o, tal qual um soldado de guerra, entregue ao inimigo.

Seu coração bate mais rápido quando a porta abre e o outro paciente sai do consultório. Você mal consegue olhar a expressão do paciente, quando o doutor pede um instante para reorganizar a sala medieval de tortura dele. Em minutos, ele reabre a porta, sorri para a sua mãe, e diz: "ele pode entrar". E vira pra você: "vamos lá?", sorrindo, como um anjo da morte. A mescla de fúria e pânico impedem você de ver com clareza. Você pensa em furar o pescoço dele com a broca maldita. Pensa em atacar a atendente e fazê-la de refém, em troca de sua liberdade, pensa em fugir pela janela do consultório. Mas tudo o que consegue fazer é ser conduzido pela espiã até a sala.
Se Dante Alighieri, escritor renascentista italiano e autor de "O Inferno", visse a sala que você agora vê, ele certamente adicionaria alguns capítulos à obra dele. No centro, uma cadeira/poltrona/divã, dando a falsa sensação de conforto. Em volta, aqueles aparatos todos, como brocas, e ferrões, e tubos, e pinças, e cutucadores... Seu estômago começa a ceder à pressão interna. Em seu estado de torpor, suas pernas começam a ceder e, para não passar vexame, você se senta na poltrona, que é o único lugar para se sentar, afora a cadeira do dentista que, claro, está ocupada por ele. O dentista fica entretido com sua mãe. Perguntas genéricas sobre sua saúde, seus dentes, formas de pagamento, essas miudezas. Sua mãe abandona a sala. Vamos à carnificina!

"Abra mais um pouco a boca", e uma cutucadas aqui e ali. Algumas broncas pelo relaxo na escovação, outras cutucadas. Ele pega um tubinho. Joga alguma coisa na sua boca, e manda você cuspir. "Bom, vamos fazer uma limpeza aqui para tirar o tártaro, e você tem que escovar melhor aqui", diz, bonzinho. Você não tem a menor noção se seus olhos deixam transparecer o seu medo simples e puro. Simples e puramente medo. "Olha só...", ele diz, ao checar um dos dentes. "Parece que temos um morador aqui...". Algumas cutucadas. O espelhinho entra na boca. Outras cutucadas. "É, é uma cárie. Vamos ter de removê-la". Acho que essa é uma boa hora para entrar em pânico.
"Ah, ah-eh-há, eh-ah, ah?", diz você, mas o que você diz é ininteligível, porque sua boca está aberta, e cheia de tubinhos e coisas. Ele deve entender a essência, entretanto, porque responde "Não se preocupe. Vai ser rápido. Nem vai doer". Agora, sim. É uma ótima hora de se entrar em pânico.

Queimando de ódio por ter dado munição ao inimigo, você toma a única decisão possível: preparar-se para o pior. Ou, como a nossa estimada Ministra do Turimo tão bem disse, relaxa e goza. Ele coloca uma agulha na sua boca. "Relaxa, é só o anestésico...". Depois, algumas preparações, um tubinho de sugar baba, e vamos ao trabalho! Alguns dentistas são tecnológicos, têm trequinhos de última geração, mas a idéia é a mesma - furar seu dente até a cárie sair rendida.

O barulho cessou. A ausência do barulho deixa seu cérebro livre para realizar pensamentos avançados. "Acabou?", você pensa. O dentista puxa a máscara, e diz: "Pronto. Terminamos. Viu como não doeu nada? Você nem reclamou!". Você olha, estupefato. Não doeu, mesmo! Ele diz que, devido à anestesia, é possível que você tenha dificuldade em falar. E que não é sensato comer nada por uma hora, e não comer nada muito duro por umas 4 horas, para que a massa endureça bem. Dente restaurado, tudo arrumado, você está liberado para ir. Como assim? E a dor? Já acabou? Ele foi simpático, mesmo? Sorridente de verdade? Fez piadinhas, elogiou seus dentes? Isso é injusto! Como é que você pode odiar um dentista se você gostou dele? Se ele torce pro seu time? Se ele é um amor de pessoa, se ele mostra a foto do filhinho dele, que acabou de nascer? Como?
É duro odiar um cara que é tão gente boa, que gosta de você, que cuida de você, que é simpático, bonito, inteligente, agradável. Mas, sei lá, eu esqueço de tudo isso quando ouço a broca. Aquela maldita broca.

Ouvindo:
An Honest Mistake
The Bravery
The Bravery (2005)